[Resenha de Tinta] O Livreiro de Cabul


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Título original: Bokhandleren I Kabul
Tradução: Grete Skevik
Número de páginas: 278
Edições Bestbolso
Ano de lançamento: 2002
ISBN: 9788577991082
Nota: 4

 Sinopse: Campeão nas listas de mais vendidos em todo o mundo, traduzido para quarenta países, O livreiro de Cabul foi considerado pela crítica um dos melhores livros de reportagem sobre a vida afegã depois da queda do Talibã. após conviver três meses com o livreiro Sultan Khan, em Cabul, a jornalista norueguesa Åsne Seierstad compôs este retrato das contradições extremas e da riqueza daquele país. Por mais de vinte anos, sultan Khan enfrentou as autoridades para prover livros aos mercadores de Cabul, e assistiu aos soldados talibãs queimarem pilhas e pilhas de livros nas ruas. Por meio de uma narrativa envolvente, Åsne Seierstad dá voz à família Khan, apresentando uma coleção de personagens comoventes que reflete as desigualdades do Afeganistão.

Resenha: 

Uma jornalista vive o dia a dia da família de Sultan Khan, uma família afegã. Uma família que nem sequer era típica, pertencente a uma espécie de classe média, como diz a própria autora. Sudan é “O Livreiro de Cabul’, um homem de infância humilde que conseguiu, com muito esforço, jogo de cintura e poucos escrúpulos, montar várias livrarias na cidade Cabul. Vemos através dos olhos de  Åsne, a vida de Sultan, daqueles com quem ele vive e de alguns que vivem ao seu redor. 
Uma das maiores críticas feitas por Asne não só a Sultan, mas à sociedade em que está inserida, é a visão que os homens e, até, as próprias mulheres, têm do sexo feminino. A indignação da autora pode ser constatada logo no prefácio do livro:

Mulheres afegãs usando a Burca
O que me revoltava era sempre a mesma coisa: a maneira como os homens tratavam as mulheres. A crença na superioridade masculina era tão impregnada que raramente era questionada. Em discussões, ficava claro que, para a maioria deles, as mulheres são de fato mais burras que os homens, que o cérebro delas é menor e que não podem pensar de maneira tão clara quanto os homens.
Eu era vista como uma espécie de criatura bissexuada. Como mulher ocidental eu podia me misturar tanto com as mulheres quanto com os homens. Se eu fosse homem, nunca poderia ter morado com a família da mesma maneira, tão próxima às mulheres de Sultan, sem que as pessoas começassem a fofocar. (p. 11)

Para entendermos os acontecimentos, os hábitos, 'a maneira de ser' do povo, a autora  faz um apanhado histórico, social e político, sem o qual não conseguiríamos entender nada, ou quase nada. O livro é dividido em capítulos nos quais vamos aprendendo sobre a história de Cabul e do Afeganistão como um todo, desde o imperialismo, ao terror do talibã, aos bombardeios americanos na busca por Osama Biladen, até 2002, o qual já é considerado um tempo de relativa paz.
Gostei muito da escrita em geral, mas surpreendi-me com a poesia que aparece meio que escondida, mas dando aquele toque a mais. Para mim, o capítulo mais bonito do livro chama-se Cheiro de poeira (p. 161 a 178), encantou-me a forma que a autora encontrou para descrever o dia a dia de Leila, uma irmã de Sultan. Vou deixar aqui uma das partes que mais me perturbou:

Leila nunca anda totalmente sozinha. Não convém a mulher jovem andar desacompanhada. Quem sabe aonde poderia ir? Talvez encontre-se com alguém, talvez para pecar. Nem no mercado de hortaliças ela anda sozinha. Pelo menos leva um menino vizinho. Ou pede a ele que faça as compras para ela. Estar sozinha é uma idéia desconhecida para Leila. Ela nunca, em nenhum lugar, esteve sozinha. Nunca ficou sozinha no apartamento, nunca foi sozinha a lugar algum, nunca foi deixada sozinha em lugar algum, nunca dormiu sozinha. Todas as noites dorme no tapete ao lado da mãe. Leila não sabe o que é estar só e nem sente falta disto. A única coisa que poderia desejar seria mais sossego e menos tarefas a cumprir. (p. 170-171)

Por prezar imensamente meu canto, minha individualidade, minha vontade de ficar só -  ler esse relato deixou-me com o coração apertado.
Outro tema, bem comum neste livro, é o domínio talibã e seus efeitos devastadores para o povo e, principalmente, para a cultura afegã. Depois da longa invasão da URSS, de 1879 a 1889, o fragilizado Afeganistão começa a ser tomado pelo mais rígido sistema islâmico, o Talibã, que estende seu domínio até Cabul em 1996. O Talibã e suas regras, que, a meu vê, são uma agressão a qualquer povo, uma transgressão doentia, só foi parcialmente abolido depois da invasão dos EUA em 2001. Aqui uma conversa extraída do livro, entre Sultan e um paquistanês muçulmano:

...Um dos homens no tapete lamenta pelo Talibã ter sido expulso do Afeganistão.
- Estamos precisando de alguns talibãs no poder aqui no Paquistão também, para fazer uma limpeza - ele diz.
- É fácil para você, que não sentiu o Talibã na pele, dizer isto. O Paquistão teria desmoronado se o Talibã chegasse ao poder, não se iluda - troveja Sultan. - Imagine só: todos os cartazes de propaganda viriam abaixo, só nesta rua são milhares. Todos os livros com ilustrações seriam queimados, o mesmo aconteceria a todo o acervo paquistanês de filmes e música, todos os instrumentos seriam destruídos. Nunca mais se poderia ouvir música ou dançar. Todos os cibercafés seriam fechados, a televisão seria proibida, as rádios só transmitiriam programas religiosos. Todas as meninas seriam retiradas da escola, todas as mulheres seriam mandadas do trabalho para casa. O que seria do Paquistão, então? O país perderia centenas de milhares de empregos e afundaria numa grave depressão. E o que aconteceria com todas essas pessoas demitidas quando o Paquistão não fosse mais um país moderno? Iriam para a guerra? - Sultan pergunta exaltado.
O homem encolhe os ombros.
- Bem, então não todo o Talibã, talvez apenas alguns deles. (p. 71)

Por fim, queria destacar também as migrações entre o Paquistão e o Afeganistão. No livro, destaca-se a dificuldade em atravessar o fronteira na direção Afeganistão-Paquistão, mesmo depois da queda do Talibã. E, a já permitida viagem contrária (do Paquistão para o Afeganistão), pelo menos legalmente, como é narrado no livro: 

Finalmente pode voltar para Cabul. Desta vez, não precisa passar pela árdua viagem a cavalo. É só a entrada no Paquistão que é proibida aos afegãos; ao sair não há controle de passaporte...
...Pedras enormes ameaçam despencar num lado da estrada. ... Não só avalanches ameaçam a estrada. Logo após a queda do Talibã, quatro jornalistas foram espancados e depois mortos com tiros na nuca. O chofer sobreviveu porque recitou a profissão de fé islâmica...(p.73)

Pra fechar, indico um filme que tem como fundo as peregrinações e divisões religiosas que acontecem entre esse dois países nos anos pós Segunda Guerra Mundial: Entre dois Mundos (título original: Partition) do diretor Vic Sarin. Para quem se interessar, tem uma resenha muito boa desse filme em http://www.papaizao.com.br/filmes_int.htm
Esse livro foi cortesia do Grupo Livro Viajante, do Skoob 

PS: Se quiser outra visão, resenha pela Agatha Borboleta

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